"Roteiro do Conhecimento": Uma Iniciativa Incoerente da Indústria do Calçado em Portugal
"De pequenino se torce o pepino", um ditado que a indústria portuguesa de calçado está a aplicar à letra, com a intenção de superar a falta de mão-de-obra que ameaça o futuro do setor. Para tal, a APICCAPS lançou a iniciativa “Roteiro do Conhecimento”, direcionada a alunos do primeiro, segundo e terceiro ciclos. Notícia AQUI.
Porém, é aqui que a estratégia mostra a sua incoerência. Esta abordagem desvaloriza os atuais trabalhadores do setor, enquanto falha na tentativa de formar e adaptar os trabalhadores à nova realidade do setor. O foco na juventude, desvalorizando os atuais trabalhadores, é uma estratégia que vai manter os trabalhadores na precariedade.
A Incoerência da Estratégia
As incoerências da estratégia ficam evidentes quando analisamos o modus operandi da indústria. A falta de mão-de-obra é um problema real, conforme indicado pela Comissão Europeia, que estima que a indústria europeia da moda necessitará de 500 mil novos colaboradores até 2030. No entanto, é importante perguntar: qual é a causa desta falta de mão-de-obra?
Os trabalhadores do setor enfrentam condições de trabalho precárias, desde baixos salários, subsídios de alimentação irrisórios, falta de respeito pelos direitos da parentalidade, trabalho extraordinário forçado, até à falta de higiene e segurança no trabalho. Portanto, antes de se voltar para a juventude, seria mais sensato e responsável melhorar as condições de trabalho dos atuais trabalhadores.
Falha na Formação e Adaptação dos Trabalhadores Atuais
A indústria do calçado está a passar por uma grande transformação, com a automação e robotização a ameaçar postos de trabalho. Neste contexto, seria razoável esperar que a indústria se empenhasse em formar e adaptar os trabalhadores atuais a estas novas tecnologias, rapidamente. No entanto, não há nenhuma indicação clara de que este seja o caso.
Na realidade, o que vemos é a indústria focada em atrair novos talentos, enquanto os trabalhadores atuais são deixados à mercê de uma transformação tecnológica que ameaça os seus empregos. Esta abordagem não só é injusta para os trabalhadores atuais, como também é insustentável a longo prazo.
A Juventude como Solução?
A indústria do calçado parece acreditar que a solução para a falta de mão-de-obra reside na juventude. No entanto, esta visão ignora o fato de que a indústria enfrenta um problema estrutural mais profundo.
Focar na juventude pode parecer uma solução atraente, mas é uma estratégia que ignora o fato de que o setor precisa de investir na valorização e formação dos seus atuais trabalhadores.
O "Roteiro do Conhecimento" é, sem dúvida, uma iniciativa louvável, mas não pode ser usado como um atalho para contornar os problemas estruturais que o setor enfrenta. É imperativo que a indústria do calçado invista nos trabalhadores atuais, em vez de procurar substituí-los por uma força de trabalho mais jovem, que ao verem a situação dos seus pais, é muito difícil que ingressem no setor do calçado. A mudança é urgente!
Conclusão: Precariedade e Desvalorização
É claro que a indústria do calçado em Portugal está a enfrentar desafios significativos. No entanto, a solução para estes desafios não reside em apelar à juventude, mas sim em investir na formação e na valorização dos atuais trabalhadores do setor. A indústria deve também trabalhar para melhorar as condições de trabalho, para que o setor se torne mais atraente para os potenciais trabalhadores.
Ao invés disso, o "Roteiro do Conhecimento", ao focar-se na juventude, parece estar a tentar colocar um penso rápido numa ferida que precisa de uma intervenção cirúrgica. Esta abordagem só vai perpetuar a precariedade e a desvalorização dos trabalhadores do setor.
Por último, é importante relembrar o seguinte: a indústria do calçado, embora seja um pilar importante da economia portuguesa, deve assegurar que o seu sucesso não é construído às custas dos seus trabalhadores. A indústria deve, portanto, fazer um esforço para resolver os problemas estruturais que estão na raiz da falta de mão-de-obra, em vez de procurar soluções rápidas e potencialmente prejudiciais.